Fernando Pessoa
Fernando António Nogueira Pessoa, nascido no dia 13 de junho de 1888, em Lisboa, Portugal, falecido no dia 30 de novembro de 1935. Quando tinha apenas cinco anos perdeu o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, vitimado pela tuberculose. No mesmo ano sua mãe deu à luz seu irmão, que morreu um ano mais tarde (mais dois irmãos teriam morte prematura infantil). Em 1895 sua mãe casou com João Miguel Rosa, cônsul português na África do Sul, para onde foi morar a família. Terminou os estudos em 1904 na Universidade do Cabo. Retornou a Lisboa no ano seguinte, onde começou a frequentar a Faculdade de Letras e desistiu um ano depois. Passou a trabalhar, em 1908, como correspondente estrangeiro, profissão que exerceu por toda a vida.
Nota autobiográfica de Fernando Pessoa: http://www.pessoa.art.br/pessoa/?p=13
O poeta publicou um único livro em vida: Mensagem. Para o livro, Pessoa coligiu alguns poemas já escritos e alguns novos, por ocasião de participar do concurso Antero de Quental, promovido pelo Secretariado Nacional de Propaganda do governo de Salazar em 1934. O livro ficou em segundo lugar no concurso. O restante da obra publicada em vida foi feita em revistas de poesia: A Águia, Renascença, Orpheu, Portugal Futurista, Atena, Presença. A revista Orpheu (de 1915), destaca-se por ter sido editada por ele mesmo e seu grande amigo Mário de Sá-Carneiro, cuja publicação é marco de inauguração do modernismo poético português. Nela publicaram diversos novos poetas que romperam com a tradição literária de então e provocaram escândalo estrondoso no meio. Classificada como “Literatura de Manicômio” por seus detratores, a intenção dos poetas da Orpheu era exatamente escandalizar, trazendo à tona algumas das principais correntes de vanguarda artística europeia do início do século XX.
Além da influência das vanguardas europeias, notadamente do Futurismo, em seus poemas, Fernando Pessoa criou ele mesmo movimentos artísticos, como o Sensacionismo, aspecto central em sua estética literária, doutrina que defende a inexistência do real, que tudo são sensações e essa é a realidade. Um subjetivismo emocional e empírico extremo, portanto. Há ainda o Interseccionismo que propõe que todas as sensações são intersecções de outras sensações, não havendo sensação pura.
A revista Presença e seus colaboradores, caracterizados como a segunda geração do modernismo português em 1927 viram em Fernando Pessoa seu mestre. Foi então que o poeta começou a adquirir certo renome e importância na literatura portuguesa.
Aparentemente dono de um temperamento melancólico e de uma personalidade pouco propensa a enfrentamentos, o próprio Fernando Pessoa definiu a si mesmo, ironicamente, como um histeroneurastênico, reconhecendo fenômenos de abulia e histeria. Atormentado constantemente pela consciência extrema de seu estado psíquico e emocional, Pessoa passou por diversas crises depressivas, com desejos de ser internado clinicamente. Por motivo do suicídio de Sá-Carneiro em 1916, em 1920 que o levou a terminar com Ophélia Queiroz, única mulher com quem se relacionou afetivamente na vida pelo que se conhece, pela morte de sua mãe em 1925. Vendo sua obra como um todo, percebe-se uma dificuldade de encarar e superar, de lidar com obstáculos e de sair da contemplação da vida. Um apego às sensações, uma anulação de si, ou antes, uma despersonalização causada pela multipersonalização. De tanto se dividir, de fingir que é o que não é, Fernando Pessoa desapareceu. De estar em tudo, ausentou-se de si:
(...) a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestaram na minha vida prática, exterior e de contato com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...”
Fernando Pessoa em carta a Adolfo de Casais Monteiro.
Fernando Pessoa era também um racionalista místico, alinhado a várias correntes esotéricas, um estudioso do ocultismo. Alguns poemas de sua lavra explicitam esse seu lado, como o sebastianismo de Mensagem e a transcrição poética de alguns rituais iniciáticos de ordens secretas às quais era ligado, como a Rosa Cruz e a Maçonaria.
Em 29 de novembro de 1935 foi internado no hospital com cólica hepática. Morreu no dia seguinte aos 47 anos de idade. A última frase que escreveu foi em inglês: “I know not what tomorrow will bring”.
Seu legado conta com mais de 27 mil documentos deixados em uma arca, entre textos, poemas, ensaios, cartas, contos, peças, panfletos políticos, etc. O Estado português havia comprado esse espólio, mas privatizou há pouco mais de uma década e até hoje é estudado, discutido e dividido entre seus heterônimos.
Heterônimos
A obra de Fernando Pessoa tem a particularidade curiosa e única na literatura universal de ser feita baseada em heterônimos. A diferenciação do pseudônimo, usado para ocultar o nome do autor, o heterônimo, tem não só nome próprio, mas história, personalidade e estilo próprios. Pessoa criou mais de setenta heterônimos!
Ainda criança criou seu primeiro heterônimo (ou amigo imaginário?) aos quatro anos de idade: Chevalier de Pas (Cavaleiro do Nada em francês). Na adolescência ainda mais. Mas foi só em 1914, antes de completar 26 anos de idade, que Fernando Pessoa criou seus três heterônimos principais. Foi o que o autor chamou de “Dia Triunfal” na carta autobiográfica que escreveu ao crítico Adolfo de Casais Monteiro em janeiro de 1935:
“(...) foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O guardador de rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele mesmo. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra sua inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que ainda se passa.”
Nem toda a sua obra está escrita no nome de seus heterônimos, mas parte extremamente significativa e variada dela. Ainda, como o poeta pulicou poucos poemas em vida, nem todos seus poemas escritos e encontrados após sua morte estão designados a seus heterônimos, mas possuem características próximas aos poemas que o autor definiu heteronimicamente. Essa contínua divisão entre os muitos nomes poéticos de Pessoa ainda prossegue analisado por especialistas que estudam seu legado.
Alberto Caeiro
O mestre de todos os seus outros heterônimos e dele mesmo, conforme dito pelo próprio autor. Na sua biografia, Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915 de tuberculose (26 anos). Tendo vivido sua vida no campo, não teve educação formal e vivia de pequenos rendimentos. Cedo perdeu os pais e morou com uma velha tia. Era louro de olhos azuis, frágil e simples. Sua poesia é marcada pelo empirismo, pelo que se pode ver, ouvir e sentir, mais não há e não precisa haver mais. O bucólico e o telúrico são preponderantes como temas poéticos. Pessoa escrevia em nome de Caeiro “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. (...) Caeiro escrevia mal o português”.
Caeiro despreza e nega a filosofia, a religião, a poesia e o pensamento como um todo. Apenas o que se sente quando se está na Natureza é válido para a vida. Não há mistério, tudo está dado e perceptível no que se toca e se enxerga. “O único mistério é haver quem pense no mistério”. Pensar é adoecer dos sentidos, que captam a beleza simples da vida. Enquanto Fernando Pessoa e seus heterônimos restantes são sempre atormentados pelo sentido das coisas, pelo sofrimento da lucidez esmagadora ou da dúvida intelectual, Caeiro, ao contrário despreza tudo isso e se compraz em viver a vida simples do campo. Por isso Alberto Caeiro é o poeta mestre, pela tranquilidade que ensina, que nenhum dos demais poetas pessoanos pode alcançar, pela inocência primitiva de sua poesia e modo de vida.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
É o poeta do neopaganismo, inspirado pela poesia clássica dos antigos romanos, preocupado com a passagem arrasadora do tempo. Nascido em 1887 no Porto, é médico, autoexilado no Brasil por ser de ideologia política monárquica. Estudou em colégio jesuíta, conhece o latim e o grego. Um pouco mais baixo e mais forte que Fernando Pessoa, de pele morena. Escreve em nome de Reis “depois de uma deliberação abstrata que subitamente se caracteriza numa ode. (...) Reis escreve melhor que eu,mas com um purismo que eu considero exagerado”. Dotado de uma poesia neoclássica, Reis tende a manter suas emoções sob domínio mental. Assim também seus versos se submetem a regras clássicas poéticas. Diferencia-se assim de Fernando Pessoa e se torna único entre os heterônimos: Reis é disciplinado e equilibrado.
A poesia de Ricardo Reis é fortemente marcada pela influência de duas correntes filosóficas e estéticas da antiguidade: o estoicismo e o epicurismo. Enquanto estóico, Reis se resigna ante os acontecimentos inevitáveis da vida, como a morte, o sofrimento e a passagem do tempo. Nada a fazer a não ser aceitar a vida como ela se dá e tirar daí a calmaria. Em seus poemas epicuristas, já que a vida passa logo, é preciso tratar de aproveitá-la, carpe diem, mas com o equilíbrio clássico. Prazer sim, mas orientado, medido, sem excessos, numa acepção tipicamente greco-romana.
Quero, Neera, que os teus lábios laves
Na nascente tranquila
Para que contra a tua febre e a triste
Dor que pões em viver,
Sintas a fresca e calma natureza
Da água, e reconheças
Que não têm penas nem desassossegos
As ninfas das nascentes
Nem mais soluços do que o som da água
Alegre e natural.
As nossas dores, não, Neera, vêm
Das causas naturais
Datam da alma e do infeliz fruir
Da vida com os homens.
Aprende pois, ó aprendiza jovem
Das clássicas delícias,
A não pôr mais tristeza que um suspiro
No modo como vives.
Nasceste pálida, deitando a regra
Da tua vã beleza
Sob a estólida fé das nossas mãos
Medrosas de ter gozo
Demasiado preso à desconfiança
Que vem de teu saber,
Não para essa vã mnemónica
Do futuro fatal.
Façamos vívidas grinaldas várias
De sol, flores e risos
Para ocultar o fundo fiel à Noite
Do nosso pensamento
Curvado já em vida sob a ideia
Na nascente tranquila
Para que contra a tua febre e a triste
Dor que pões em viver,
Sintas a fresca e calma natureza
Da água, e reconheças
Que não têm penas nem desassossegos
As ninfas das nascentes
Nem mais soluços do que o som da água
Alegre e natural.
As nossas dores, não, Neera, vêm
Das causas naturais
Datam da alma e do infeliz fruir
Da vida com os homens.
Aprende pois, ó aprendiza jovem
Das clássicas delícias,
A não pôr mais tristeza que um suspiro
No modo como vives.
Nasceste pálida, deitando a regra
Da tua vã beleza
Sob a estólida fé das nossas mãos
Medrosas de ter gozo
Demasiado preso à desconfiança
Que vem de teu saber,
Não para essa vã mnemónica
Do futuro fatal.
Façamos vívidas grinaldas várias
De sol, flores e risos
Para ocultar o fundo fiel à Noite
Do nosso pensamento
Curvado já em vida sob a ideia
Enquanto eu vir o sol doirar as folhas
E sentir toda a brisa nos cabelos
Não quererei mais nada.
Que me pode o Destino conceder
Melhor que o lapso gradual da vida
Entre ignorâncias destas?
Pomos a dúvida onde há rosas. Damos
Metade do sentido ao entendimento
E ignoramos, pensantes.
Estranha a nós a natureza externa.
Campos espalha, flores ergue, frutos
Redonda, e a morte chega.
Terei razão, se a alguém razão é dada,
Quando me a morte conturbar a mente
E já não veja mais
Que à razão de saber porque vivemos
Nós nem a achamos nem achar se deve,
Impropícia e profunda.
Sábio deveras o que não procura,
Que encontra o abismo em todas coisas
E a dúvida em si-mesmo.
E sentir toda a brisa nos cabelos
Não quererei mais nada.
Que me pode o Destino conceder
Melhor que o lapso gradual da vida
Entre ignorâncias destas?
Pomos a dúvida onde há rosas. Damos
Metade do sentido ao entendimento
E ignoramos, pensantes.
Estranha a nós a natureza externa.
Campos espalha, flores ergue, frutos
Redonda, e a morte chega.
Terei razão, se a alguém razão é dada,
Quando me a morte conturbar a mente
E já não veja mais
Que à razão de saber porque vivemos
Nós nem a achamos nem achar se deve,
Impropícia e profunda.
Sábio deveras o que não procura,
Que encontra o abismo em todas coisas
E a dúvida em si-mesmo.
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
O mais complexo e emocional de seus heterônimos, poeta que abarca em si muitos dos pressupostos da modernidade, a velocidade, a ânsia, euforia, mas também da melancolia, do desencanto, da dúvida existencial. Nascido em 1890, na cidade de Tavira, em Portugal, Campos teve educação vulgar, aprendeu latim com um tio padre e formou-se engenheiro naval na Escócia. Fez uma viagem ao Oriente, mas estabeleceu-se em Lisboa, onde se encontra inativo. Magro, curvado, pele entre branca e morena, talvez de ascendência judia, usa um monóculo. Pessoa escrevia em nome de Campos “quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê”. Nessa motivação vaga, onde geralmente imprimia por Campos uma emoção, ou uma histeria, que dizia não ter ele mesmo. A poesia de Álvaro de Campos é desordenada, espontânea, prosa ritmada, extremamente pessoal e dramática.
A obra desse heterônimo está dividida em três fases: 1ª) Pré-Caeiro: antes de tomar contato com seu mestre Alberto Caeiro, marcada pelo pessimismo e ideia de decadência. É a fase do poema Opiário; 2ª) Euforia moderna: influenciado por Marinetti e Walt Whitman. Odes repletas de velocidade, entusiasmo, tecnologia, liberdade, progresso, futuro, onde aflora um desejo de ter tudo ao mesmo tempo, ser todos, estar em todos os lugares; 3ª) Fase melancólica: a náusea existencial da modernidade, a inutilidade dos significados, atos e afetos, o desencanto com as coisas, o mundo, as pessoas e a vida. Tédio, desilusão, solidão e cansaço marcam, daí para diante, Álvaro de Campos em sua fase mais representativa.
Talvez pela característica mais expurgatória de sentimentos desse heterônimo, Álvaro de Campos tem a obra mais extensa e é o heterônimo mais próximo em personalidade e estilo do Fernando Pessoa ele mesmo. Foi sob a assinatura de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa escreveu seus últimos poemas.
Passagem das Horas – ode sensacionista
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.
Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E porque é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo contínuo
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
Às leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso
E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria
Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz...
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o polícia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com guizos,
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua
Eu, o que eles não sabem de si-próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O lugar onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal-encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso o monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A intonação das vozes que nunca ouviremos mais —
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam — general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame où Margot a pleuré!
Caem folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...
Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.
Todos os amantes beijaram-se na minha alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...
Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima)
Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!
Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As coisas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar lá para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.
Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E porque é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo contínuo
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
Às leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso
E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria
Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz...
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o polícia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com guizos,
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua
Eu, o que eles não sabem de si-próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O lugar onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal-encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso o monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A intonação das vozes que nunca ouviremos mais —
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam — general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame où Margot a pleuré!
Caem folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...
Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.
Todos os amantes beijaram-se na minha alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...
Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima)
Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!
Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As coisas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar lá para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
Lisbon Revisited (1923)
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...
O próprio poeta considerava Bernardo Soares como um desdobramento de si mesmo, um semi-heterônimo: “é um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tênue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual...”
Bernardo Soares é um ajudante de guarda-livros num escritório de Lisboa e é de sua autoria o Livro do Desassossego, livro escrito em forma de prosa. Livro quase todo de Bernardo Soares, ainda que se possa ver muito do próprio Fernando Pessoa como autor, e de um outro heterônimo, Vicente Guedes. Longe de ser um romance, está mais para diário íntimo fictício ou caderno de notas com ensaios e pensamentos, embora também não seja nenhuma dessas coisas. Trata-se fragmentos de textos e de fragmentos do autor, escritos ao longo de 32 anos, de 1913 até a morte de Pessoa. É a expressão de si, ou de quase-si por se tratar de um semi-heterônimo, sem ordem nem significado. A antítese de um livro, na genialidade original tão afeita ao homem que fragmentou a si mesmo.
“Uma biografia sem fatos”, como definiu Bernardo Soares, um amontoado de confissões repletas de sinceridade, com a alma aberta e a face a tapa. Confissões, porém, sem desejos além da confissão, onde não se espera perdão, redenção, piedade ou simpatia.
45.
Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e na emoção dos pensamentos, só nos pensamentos das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer baixa no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas por seu afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais... a música do faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas do deserto do camelo vazio sem destino...
Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e na emoção dos pensamentos, só nos pensamentos das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer baixa no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas por seu afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais... a música do faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas do deserto do camelo vazio sem destino...
Há também uma boa parte da obra poética de Fernando Pessoa assinada por ele mesmo, o ortônimo, e se caracteriza por um certo alinhamento aos moldes mais regulares da poesia, com rimas e certa métrica. No seus temas, sobressaem-se as preocupações existenciais, a banalidade, a própria poesia e o ocultismo. Mensagem, a epopeia portuguesa, carregada de misticismo e simbolismo, conta, heroicamente, os feitos da história portuguesa e suas características naturais. Ainda de sua autoria são mais de 300 quadras escritas no começo e no fim de sua trajetória como poeta.
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem querer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem querer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Meu coração a bater
Parece estar-me a lembrar
Que se um dia eu te esquecer
Será por ele parar
----
Andorinha que vais alta,
Porque não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?
---
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.
Parece estar-me a lembrar
Que se um dia eu te esquecer
Será por ele parar
----
Andorinha que vais alta,
Porque não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?
---
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração
Fernando Pessoa na juventude
Fernando Pessoa ao lado dos irmãos
Em partida de xadrez com o "mago" Aleister Crowley
Referências Bibliográficas
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Richard Zenith (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2006.
PESSOA, Fernando. Cancioneiro. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2007.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Quadras ao Gosto Popular. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Richard Zenith (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2006.
PESSOA, Fernando. Cancioneiro. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2007.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
PESSOA, Fernando. Quadras ao Gosto Popular. Jane Tutikian (org.) Porto Alegre: L&PM, 2008.
A obra de Fernando Pessoa está em domínio público: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaObraForm.do?co_autor=&co_categoria=2&co_idioma=&co_midia=2&co_obra=&colunaOrdenar=DS_TITULO&ds_titulo=&first=50&no_autor=Fernando Pessoa&ordem=null&pagina=1&select_action=Submit&skip=0
E alguns site organizam alguns dos seus poemas e documentos:
http://www.pessoa.art.br
http://arquivopessoa.net
http://www.revista.agulha.nom.br/pessoa.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/pessoa.html
http://www.insite.com.br/art/pessoa/lista.php
Tumblr: http://fernandopessoas.tumblr.com