Realmente V, Crime e Castigo, assim como outros romances de Dostoiévski, tem sua importancia contida muito mais nas idéias e na "psicologia" dos personagens do que na progressão da história.
Claro, para mim é prazeroso ler essas histórias tortuosas e repletas de digressões (ainda assim dotadas de sentido, mesmo que vários) que se aprofundam nos sentimentos e idéias dos personagens, geralmente em momentos de rupturas em suas vidas.
Liurom disse:
Faramir of Ithilien disse:
É especialmente sobre a crise espiritual que Ivan sofre, a revolta com os males do mundo e o sofrimento que ele sente em não crer em Deus. Por isso conversa com seu irmão, que é dotada de grande fé, em busca de um consolo, ainda que esse consolo seja apenas a amizade fraternal e um bom ouvido para suas palavras. No meio dessa conversa, Ivan conta uma história que ele havia criado, chamada o Grande Inquisidor.
Você mencionou que Ivan não crê em Deus. Não acho que isso seja totalmente verdadeiro. Mesmo os ateus em Dostoiévski às vezes crêem em Deus. Numa das mais belas passagens de "Os Irmãoes Karamazov", Ivan diz que até admite Deus, mas não admite seu mundo. E então ele começa a dissertar sobre as crueldades que existem no mundo, especialmente aquelas que tem como vítimas os seres mais inocentes: as crianças. Ele não se conforma com as injustiças e não acha que elas justifiquem a harmonia eterna, embora ele até admita a existência dessa harmonia. Hippolit, aliás, naquele discurso que eu mencionei, parece chegar a uma conclusão mais ou menos parecida.
Depois de meses eu estou respondendo, você não deve nem ler esta mensagem, he he.
Bem ... eu creio que certos personagens de Dostoiévski são ateus, como Ivan Karamazov. Lendo um conto dele que foi recentemente traduzido, chamado O Sonho de um Homem Ridículo, eu pude perceber que embora Dostoiévski cresse em Deus, ele sabia muito bem pensar como um ateu, imaginar como seria se ele mesmo não acreditasse em Deus. Claro, para ele o ateismo representava um grande sofrimento, a ausencia do sentido de tudo, inclusive da moral, pelas palavras do próprio Ivan. Então Ivan era ateu, mas um ateu com um desejo ardente de crer em Deus, porque via apenas nele uma explicação viavel para solucionar o mundo de sofrimento que vivemos. Mas embora ele quizesse acreditar em Deus, ele simplesmente não podia, porque essas coisas não se escolhem, na cabeça de alguém tão inteligente e racional como Ivan. O momento em que isso fica mais explícito, além da conversa dele com seu irmão Iliócha, é a conversa dele com o Padre Zózima:
(Ivan) - Sim, afirmei-o. Não há virtude sem imortalidade.
(Zózima) - É feliz se assim acredita; pode-se ser muito infeliz!
(Ivan) - Porque infeliz? ...
(Zózima) Porque segundo toda a aparência, não crê o senhor nem na imortalidade da alma nem mesmo no que escreveu a respeito da questão da Igreja.
(Ivan) - Talvez o senhor tenha razão!... No entanto, não brinquei absolutamente - confessou de modo estranho Ivan Fiódorovitch, corando imediatamente.
(Zózima) - O senhor não brincou absolutamente, é verdade. Essa idéia não esta ainda resolvida no seu coração e tortura-o. Mas o mártir também gosta por vezes de se divertir com seu desespero, igualmente como para esquece-lo. No momento, é por desespero que o senhor se diverte com artigos de revista e com discussões mundanas, sem acreditar na sua dialética e zombando dela dolorosamente a sós consigo. Esta questão não está ainda resolvida no senhor, e é isso que causa seu tormento, porque reclama ela imperiosamente uma solução.
(Ivan) - Mas pode ela ser resolvida em mim, resolvida no sentido positivo - pergunta ainda de modo estranho Ivan Fiódorovich, olhando o
stariéts com um sorriso inexplicável.
(Zózima) - Se não puder ser resolvida no sentido positivo, não o sera nunca no sentido negativo; o senhor mesmo conhece essa propriedade de seu coração; é isso que o tortura. Mas agradeça ao Criador por ter-lhe dado um coração sublime, capaz de assim atormentar-se, "de meditar nas coisas celestes e procurá-las, porque nossa morada está nos céus". Que Deus lhe conceda encontrar a solução ainda aqui embaixo e abençoe os seus caminhos!
É apenas o trecho final da conversa deles, mas esse trecho mostra o aspecto do sofrimento da não crença de Ivan "desvendado" pelas palavras do Padre Zózima. Mais tarde, em conversa com Aliócha, isso se confirmara, em toda sua complexidade. E mais importante, mostra uma constante na obra de Dostoiévski que é o caminho da fé como um caminho naturalmente marcado pelo sofrimento, nesse caso uma fé que não é alcançada.