George Orwell e o mundo de 2084.
(Leonardo Silvino, 2002-04-14)
Escrito no pós-guerra, o livro 1984 é um dos maiores clássicos do século passado. O romance de George Orwell descreve uma visão pessimista de um futuro sombrio. O autor inverteu o ano no título para criticar que o totalitarismo vigente em 1948 não era obra apenas de ficção científica. Os editores preferiram inverter os últimos dígitos para não assustar ainda mais os leitores.
O ano de 1984 passou e pouco do que foi escrito se concretizou. Atualmente, 2084 seria a projeção que mais se adeqüa ao título do livro. Provavelmente nos próximos anos oitenta teremos uma sociedade muito parecida com a que foi imaginada por Orwell, pois ainda estamos no estágio eXPerimental do controle da população. A teletela, por exemplo, foi comparada erronêamente com a televisão e mais recentemente com a internet. O aparelho imaginado por Orwell é um eficiente receptor e emissor de dados que não se compara às limitações dos aparelhos de tv e dos micro-computadores. Perto das teletelas, a broadband é uma tecnologia pré-histórica, mas a semente já foi plantada.
Depois dos atentados terroristas de setembro, os americanos desejam implantar um documento de identidade único e nacional. Como guerra é paz, poucos questionarão a necessidade de ter sua liberdade diminuída em nome da ordem. Atitudes desse tipo isoladas não representam muito perigo aos cidadãos, porém, em conjunto, são uma estratégia de controle parecida com a do Partido, o orgão máximo do poder que possuía todos os registros das pessoas. Dessa forma eles tinham o poder sobre o presente, futuro e o passado. Isto não difere muito do trabalho da mídia atual.
Para que os cidadãos sejam vigiados sem questionar, eles precisam estar condicionados duplipensando. Duplipensar é um termo da novilíngua que significa a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitar ambas. A novilíngua foi o idioma que substituiu o inglês. Esse novo idioma consiste em reduzir a quantidade de vocábulos fundido idéias num conjunto reduzido de palavras. Imbom, por exemplo, substitui perfeitamente a palavra Mal. Logo, decora-se apenas as palavras e seus sufixos e prefixos. A capacidade de questionar diminui na mesma proporção da quantidade de palavras. A cada edição do dicionário, o número de vocábulos diminuía. E assim as pessoas ficavam mais vulneráveis. Não está sendo assim na prática? Basta assistir aos shows de realidade e constatar o número reduzido de palavras proferidas. A tendência é diminuir sempre.
E é no final desse século é que o mundo de Orwell pode vir à tona. Com os megablocos, a novilíngua e a tríade que sustenta o duplipensamento: guerra é paz; liberdade é escravidão; e ignorância é força. Para acreditar nessas diretrizes é preciso duplipensar - cada um dos lemas pode ser usado em sentido oposto, dependendo do seu uso. Para entender o duplipensar é necessário duplipensar.
No livro, o personagem principal, Winston Smith, trabalha no Ministério da Verdade. Seu emprego é uma crítica à imprensa e sua tarefa é adulterar o passado, contribuindo para a manutenção do Partido no poder. O Ministério da Verdade e o controle de dados da população é fundamental, pois quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado.
Existiam ainda mais três Ministérios, o da Paz (equivalente as forças da paz da ONU), o da Fartura, responsável pelo forjamento de números e metas e pelo entusiasmo da população, assim como o nosso racionamento de energia, e o do Amor, onde os suspeitos eram levados para tortura.
Orwell descreveu um mundo dividido em megablocos, onde os indivíduos eram controlados todo o tempo através de teletelas e dos aparatos de denúncia do estado totalitário. O atual cenário cennário macro-econômico ainda engatinha para essa reformulação politico-econômica. A Oceania, englobava a Alca e o Reino Unido, ou Pista de Pouso nº1 (a definição não era pejorativa segundo o autor, entretanto é uma crítica a pátria colonizadora que virou colonizada). Os ingleses estariam de fora do megabloco da Eurásia (Europa continental e países da Ex-URSS) da mesma forma que atualmente descartam o Euro. Orwell não precisava ser vidente para projetar uma unidade européia sem a Inglaterra. A Lestásia era o terceiro-bloco formado pela união dos tigres asiáticos, China e Japão. Já os outros países integrantes do Oriente Médio, África e do sul da Ásia formariam um quadrilátero geográfico sem unidade. Esses países seriam o motivo de guerra entre os três megablocos. Não muito diferente da situação do Afeganistão, Filipinas e Palestina.
O mundo de "1984" ainda está distante. Assim como os megablocos, a redução drástica do idioma e o contole total da população estão na "pré-história". A informática é o setor mais necessário e o que mais avança para que transformação da ficção em realidade seja completa. O totalitarismo através do controle da população depende exclusivamente dos avanços tecnológicos.
Orwell criticava o totalitarismo de Estados, o qual poderá ser substituído pelo das grandes corporações. No livro, os membros do partidos eram vigiados em todos os lugares através das teletelas com medo de serem capturados. Orwell era experiente nisso: em 1949, ele denunciou, numa lista, 130 pessoas suspeitas de comunismo ao governo britânico, incluindo Charles Chaplin e Bernard Shaw.
O indivíduo não terá defesa se a realidade caminhar para o mundo de "1984". Mesmo que haja uma oposição, a possibilidade de ela ser efetiva é nula. A oposição pode existir desde que não incomode. Em 2084, esse pensamento deve ser aprimorado.
Orwell projeta o futuro numa crítica a falta de opção no presente. Se na ficção o cidadão reagisse, ele cometia crimidéia, o que bastava um pensamento ou um ato suspeito diante das teletelas e até dos próprios filhos, incentivados pelo Partido a denunciarem os pais suspeitos. Ao cometer crimidéia, o indivíduo passava a ser alvo fácil do Ministério do Amor, sendo vigiado e caçado pela Polícia do Pensamento. Tornava-se impessoa. Foi o que aconteceu com Winston, que tinha atitudes contrárias ao Partido como anotar num caderno suas idéias. Quando alguém se tornava "Impessoa" ela desaparecia e todos os seus registros eram apagados. Aquela pessoa nunca existira.
1984 não é apenas uma crítica, mas uma metáfora do que está sendo pavimentado pela novilíngua, pelo crimidéia e pelo duplipensar; presentes em 1948, possívelmente no mundo de 2084 e já em 2002.