A POLÊMICA NOVA “NORMA” QUE CONSIDERA ABUSIVA TODA A PUBLICIDADE COMERCIAL VOLTADA A CRIANÇAS – BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O ASPECTO JURÍDICO DA RESOLUÇÃO N.º 163 DA CONANDA
Tem causado polêmica no mercado publicitário – e também junto aos fãs de quadrinhos – uma norma editada pelo “Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA”, publicada no Diário Oficial da União de 04/04/2014, a qual entrou em vigor na mesma data.
A norma, editada na Resolução n.º 163 de 13/03/2014 da CONANDA, estabelece como abusiva “a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”.
Em outras palavras, a Resolução n.º 163 da CONANDA considera ilegal todo o tipo de propaganda e publicidade comercial voltada a crianças, seja por que meio for. Por consequência, a norma considera ilegal a divulgação e o anúncio de produtos infantis, tais como revistas em quadrinhos com foco no público infantil.
Para o mercado de quadrinhos, o impacto é óbvio. As publicações infantis dessa natureza sobrevivem em boa parte das receitas dos anunciantes, e evidentemente não faz sentido anunciar conteúdo voltado a adultos numa revista infantil. Na verdade, se levada à risca a proibição, sequer as próprias revistas em quadrinhos infantis poderão ser anunciadas por qualquer meio.
É fácil prever que quase ninguém teria interesse em publicar um produto que não pode divulgar, o que poderia diminuir significativamente o número de revistas existentes, e até mesmo desestimular a produção de quadrinhos nacionais desse segmento.
Quem acompanha o assunto sabe que um dos maiores opositores desse tipo de regra é Maurício de Sousa, que construiu um verdadeiro império com base em revistas em quadrinhos e produtos infantis de todo o tipo, e possui uma enorme legião de fãs de todas as idades. Além dele, o escritor Gian Danton, que já colaborou com a Quadrim no passado, fez uma boa análise dos impactos possíveis dessa norma especificamente para os quadrinhos nacionais, em sua coluna publicada no site Digestivo Cultural.
Mas afinal, agora isso é Lei, deve ser cumprida, e acabou a assunto? Não, o assunto está longe de acabar.
Ao contrário do senso comum, não é qualquer órgão governamental que pode decidir o que deve ou não deve ser feito pela população brasileira, especialmente com relação a algumas matérias como, por exemplo, a propaganda e a publicidade comercial. Existe, no nosso Ordenamento Jurídico, o chamado Princípio da Legalidade, um dos pilares do Estado Democrático de Direito que é o Brasil. Segundo esse princípio, redigido com toda a clareza no Art. 5º, II, da Constituição Federal (nossa norma máxima), “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” E lei, ou melhor, Lei, não é todo e qualquer ato normativo.
Lei vem do Poder Legislativo, seja pelo Congresso Nacional, pelas Assembleias Legislativas estaduais, ou pelas Câmaras de Vereadores municipais, dentro da competência de cada um desses. E quem, dentre esses, pode legislar sobre publicidade comercial é somente o Congresso Nacional, pois o Art. 22, também da Constituição, em seu inciso XXIV, diz claramente que “compete privativamente à União legislar sobre”, dentre outras matérias, “propaganda comercial”.
Note-se: privativamente quer dizer que somente o Poder Legislativo da União, o Congresso Nacional, pode criar uma Lei estabelecendo o que a propaganda comercial no Brasil pode “fazer ou deixar de fazer”. Ou seja, restringir de forma genérica a publicidade comercial, só se for por Lei Federal.
A CONANDA, por sua vez, é um Conselho ligado ao Poder Executivo (Art. 1ª, § 1º, da Lei n.º 8.242/91), com criação autorizada no Art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (esse sim, uma Lei Federal), e efetivamente criada pela Lei, também federal, n.º 8.242/91. De acordo com essa Lei, o papel da CONANDA é precipuamente “zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente”.
Dentro desse papel, a Lei autoriza a CONANDA a “elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)”.
É com base nessa autorização para “elaborar normas gerais”, referida no preâmbulo da Resolução n.º 163, que a CONANDA se sentiu competente para legislar sobre a publicidade comercial voltada a crianças. Contudo, basta ler a Lei de criação do órgão para notar que essa atuação tem como objetivo regular de que maneira a política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, prevista nos Arts. 87 e 88 do ECA, deverá ser implementada no Brasil.
Ora, regulamentar uma política governamental, isso é, um plano amplo de atuação do Estado para garantir o exercício de direitos previstos nas Leis existentes, não significa o mesmo que criar na Lei uma proibição que o legislador, no caso o Congresso Nacional, nunca criou. Significa, isso sim, que a CONANDA pode definir, por meio de regras próprias, de que forma irá agir para que as crianças e adolescentes do Brasil sejam protegidos na forma dos direitos já previstos na Lei. Em resumo, essas normas tem eficácia dentro da própria CONANDA, e não necessariamente para os cidadãos em geral.
Basta pesquisar o conteúdo da Lei n.º 8.069 (ECA) para perceber que os Arts. 87 e 88, que adstringem a competência normativa da CONANDA, não fazem nenhum tipo de proibição específica a quem quer que seja, sequer referindo a publicidade comercial. Esses dispositivos apenas estabelecem as linhas de ação e as diretrizes da já citada política de atendimento, autorizando Conselhos, como a CONANDA, a agir para assegurar os direitos da criança e do adolescente.
Direitos esses, claro, efetivamente previstos nas Leis e na Constituição Federal, e não criados de maneira autônoma pelos próprios Conselhos.
Admitir uma hipótese dessas seria admitir que os órgãos de fiscalização, como por exemplo a polícia, podem criar normas dizendo o que é e o que não é proibido, ao invés de se limitarem a fazer cumprir as Leis já existentes.
Seria a total inversão do tipo de sistema jurídico e político adotado pelo Brasil, que tem uma distinção clara na Constituição Federal entre os Poderes Legislativo (que cria as Leis), Executivo (que administra de acordo com as Leis e fiscaliza o cumprimento delas), e o Judiciário (que decide se uma conduta infringiu ou não a Lei).
No caso, a CONANDA é meramente um braço do Poder Executivo, tratando-se de um “órgão normativo e fiscalizador, que não se substitui ao Ministério Público e nem à Justiça”, conforme consta na mensagem de veto do então Presidente da República Fernando Collor ao inciso “V” do Art. 2º da Lei n.º 8.242/91, a qual criou a CONANDA. Esse dispositivo pretendia que a CONANDA atuasse como “instância superior em caso de petições, denúncias, e reclamações formuladas por qualquer pessoa ou entidade quando ocorrer ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. Parece-nos claramente que, ao vetar esse inciso, o então chefe do Poder Executivo deixou claro que a CONANDA não deveria extrapolar suas funções, proibindo que a mesma agisse como age o Poder Judiciário.
Novamente, fique claro que “órgão normativo” não é a mesma coisa que “órgão legislador”, pois uma entidade dessa última espécie só poderia ser criada pela Constituição Federal. Repita-se: é normativo para regulamentar a maneira como o próprio órgão irá agir dentro de suas funções expressamente estabelecidas em Lei, e não parar criar normas impondo aos brasileiros como agir ou não agir.
Não cabe aqui discutir se crianças e adolescentes merecem ser protegidos contra publicidade abusiva. É indiscutível que a Lei previu que sim, de fato merecem. O que é discutível é estabelecer o que é publicidade abusiva, e em momento algum a Lei Federal autorizou a CONANDA a tomar essa decisão de forma arbitrária. A publicidade abusiva é previsto no Art. 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, também uma Lei Federal. Esse dispositivo define que “é abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.
Como se nota da simples leitura, o Código de Defesa do Consumidor definiu como abusiva, no contexto aqui discutido, a publicidade que “se aproveite de julgamento e experiência da criança”, e não toda e qualquer publicidade voltada a crianças. Não é preciso ser especialista em publicidade e propaganda para entender que nem toda propaganda com foco no público infantil se aproveita “do julgamento e experiência da criança”.
A exemplo do que fez o ECA, o Código de Defesa do Consumidor não proibiu toda e qualquer publicidade comercial voltada a crianças, apenas estabeleceu parâmetros que deverão ser observados em peças dessa natureza. Se há parâmetros a serem observados, é evidente que essas peças podem existir, do contrário seriam simplesmente proibidas na sua totalidade pelo Código, o que não ocorreu.
Em questões como essa, é preciso que seja feita uma análise caso a caso de peça ou campanha publicitária, para que se possa perceber se, de fato, essa peça ou campanha foi abusiva dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor, pelas demais Leis, ou mesmo pela Constituição Federal. Essa análise, todavia, é feita pelo Poder Judiciário, não se admitindo à CONANDA que usurpe a competência do Juiz para tomar esse tipo de decisão, muito menos que invada a competência do Legislador para estabelecer um parâmetro mais genérico e abrangente do que aquele que a Lei estabelece. A CONANDA poderia, isso sim, levar ao Poder Judiciário uma peça publicitária que considerasse abusiva, dentro dos limites das Leis já citadas, e pedir que o Poder Judiciário decidisse se, com efeito, esses limites foram violados. Ao pretender fazer mais do que isso, a Resolução n.º 163 introduziu no nosso Ordenamento uma verdadeira aberração.
Em resumo, salvo melhor juízo, entendemos que juridicamente não poderia a CONANDA decidir por conta própria quais os limites da publicidade comercial no Brasil, mesmo no caso da publicidade voltada a crianças. Apenas o Congresso Nacional, com a devida sanção presidencial, poderia criar uma norma de tolerância zero dentro dessa matéria, como é a Resolução n.º 163.
De acordo com todo o exposto acima, é possível perceber que a Resolução n.º 163 da CONANDA não deverá ser aceita pacificamente, nem pelo mercado publicitário, nem por fornecedores e anunciantes de produtos voltados a crianças. Podemos antecipar muita discussão jurídica sobre a norma, que provavelmente gerará uma enormidade de processos judiciais contra a CONANDA, além de demais órgãos e entidades que, eventualmente, apliquem à risca a Resolução.
No humilde entender do autor dessas linhas, a CONANDA prestou verdadeiro desserviço à população brasileira, e andou na contramão de suas próprias finalidades. Ao criar uma polêmica dessa natureza com base jurídica tão precária, o único efeito que conseguirá produzir será inundar o Poder Judiciário com demandas pedindo o óbvio: que prevaleça a Lei, nada mais do que a Lei.
Porto Alegre, 25 de Julho de 2014.
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Vítor Azambuja de Carvalho é advogado, inscrito na OAB/RS n.º 67.501, e autor do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Dos Limites da Publicidade Comercial no Ordenamento Jurídico Brasileiro: Uma Ótica Sob a Luz da Constituição Federal de 1988”, apresentado com nota 10 na conclusão de seu curso de Direito junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, em 2006/1.